OBJETIVO DESTE ARTIGO
O objetivo deste artigo é o de demonstrar cabalmente que muitas das atividades cartoriais realizadas pelos Escrivães de Polícia Federal podem 1) ser transferidas a servidores administrativos (isto já constava da conclusão da pesquisa de clima realizada pela ANEPF em 2018) ou 2) automatizadas e integradas pelos sistemas atualmente em uso (isto já é fruto de debates recentes, depois da implementação do ePol, novo sistema de polícia judiciária), e que 3) feito isto, haverá apenas um resquício destas atividades "cartoriais" originalmente atribuídas ao cargo de EPF, que é justamente a "papelada" básica que todo policial tem que (saber) fazer, assim como nas polícias dos EUA e Europa.
Para tanto, vamos focar este texto na atualização das conclusões da pesquisa de clima realizada pela ANEPF em 2018, demonstrando que no novo e atual cenário tecnológico (mudança do SISCART para o ePol) existe um grande potencial de se automatizar uma boa parte das atividades realizadas pelos policiais federais no sistema ePol e também integrar grande parte delas com os sistemas do judiciário (PJE e EPROC), desonerando o nosso recurso mais valioso (o humano) para atividades policiais de maior valor agregado para a instituição e para a sociedade.
O texto também serve como embasamento lógico e técnico para fundamentar uma possível transformação de cargos na estrutura de carreira policial federal que envolva o cargo de Escrivão de Polícia Federal, demonstrando claramente que existem soluções pertinentes e viáveis para alterações na atual estrutura, tanto do ponto de vista tecnológico, quanto do ponto de vista de processos e pessoas.
Vamos analisar melhor o processo de "emburrecimento" causado pelas rotinas administrativas mecânicas e burocráticas, a questão da qualidade de vida no trabalho e o papel da tecnologia e da inteligência artificial, e compreender o que isso tudo tem a ver com a transformação do cargo de Escrivão de Polícia Federal?
O HISTÓRICO DAS PESQUISAS DE CLIMA FEITAS PELA ANEPF
A ANEPF vem realizando pesquisas de clima com sua base desde a sua criação, há mais de uma década. No ano de 2018, especificamente, a diretoria executiva da ANEPF se dedicou a um projeto de pesquisa que objetivou conhecer a fundo todas as atividades realizadas pelos Escrivães de Polícia Federal, a fim de melhor entender as expectativas e anseios da categoria, bem como buscar as raízes das frustrações da categoria e propor mudanças positivas.
As atividades realizadas pelos EPFs, que foram mapeadas na pesquisa, foram classificadas pelos respondentes e plotadas em dois eixos, um dele sendo sobre a natureza da atividade (mais administrativa e burocrática ou mais policial) e outro sobre a complexidade da atividade (baixa ou alta). Todas as atividades realizadas pelos EPFs foram mapeadas nesta oportunidade.
A conclusão da pesquisa de 2018 foi basicamente a seguinte: quase a totalidade dos respondentes sentem-se muito subutilizados e estão passando pelo agonizante processo de "emburrecimento".
Os resultados gerais da pesquisa estão aqui: https://anepf.blogspot.com/2018/08/anepf-divulga-relatorio-final-da.html, e o relatório detalhado com todo o racional e a metodologia encontra-se aqui: https://drive.google.com/file/d/1UhRS_nhh6uaPc445_we8ZegkEQjEY0FO/view, caso seja do interesse do leitor aprofundar-se no assunto.
Este fenômeno de "emburrecimento" pôde ser constatado também na palestra sobre
QUALIDADE DE VIDA NO TRABALHO ministrada pelo Dr. Mario Cesar Ferreira, professor da UnB, realizada durante o XVIII CONAPEF, sobretudo a partir do 13º minuto de apresentação:
https://youtu.be/ttJvtMDPHzQ?si=ijhpAQKeNePH-m-w
Importante tema, que envolve insatisfação, decepção, falta de qualidade de vida no trabalho e processo de "emburrecimento", abordado em 2018 pela pesquisa da ANEPF, finalmente se encontra com a brilhante palestra realizada em 2023 no CONAPEF. E parece que nada mudou nos últimos cinco anos.
PRINCIPAIS CONCLUSÕES DA PESQUISA REALIZADA EM 2018
Mas vamos voltar à pesquisa realizada em 2018 para primeiramente entender o cenário daquela época e depois apresentar uma visão mais atualizada sobre as possíveis soluções, dentro de uma nova realidade e de um novo paradigma.
As atividades realizadas pelos Escrivães de Polícia Federal, mapeadas na pesquisa da ANEPF de 2018, foram classificadas pelos respondentes e plotadas em dois eixos, um dele sendo sobre a natureza da atividade (mais administrativa/burocrática ou mais policial) e outro sobre a complexidade da atividade (baixa ou alta). Observe o resultado final, no quadro abaixo, retirado do relatório final da pesquisa, com a distribuição dessas atividades nos dois eixos:
Podemos perceber que existem duas grandes concentrações de atividades, sendo uma delas as 30 atividades consideradas mais administrativas e de baixa complexidade (quadrante inferior esquerdo), e também outra concentração composta de 36 atividades de natureza policial e consideradas complexas (quadrante superior direito). As demais atividades ficaram espalhadas nos dois outros quadrantes.
À época, o
relatório final da pesquisa realizada pela ANEPF em 2018 sugeriu que
as 36 atividades complexas e de natureza policial do quadrante superior direito seriam as mais indicadas para permanecerem nas atribuições formais do cargo de Escrivão de Polícia Federal, e as 36 atividades consideradas de natureza administrativa, dos dois quadrantes inferiores, pudessem ser transferidas a servidores administrativos, sob coordenação e supervisão de servidores policiais, sendo mais óbvio atribuir as 30 atividades menos complexas a
servidores administrativos de nível médio e as 6 atividades mais complexas a
servidores administrativos de nível superior.
O QUE MUDOU NESTES ÚLTIMOS CINCO ANOS - O SURGIMENTO DO EPOL
O ponto crucial para entender a diferença da solução apresentada naquela época (2018) e a diferença para o que existe atualmente (2023) é que, na época da pesquisa o inquérito policial era impresso em papel, e o sistema utilizado pela polícia investigativa/judiciária era o SISCART, que tinha mais de uma década de existência, e que atendia bem as necessidades dos usuários, no entanto tinha tecnologia já ultrapassada.
Já no ano seguinte da pesquisa, em 2019, o SISCART começou a ser oficialmente substituído pelo sistema ePol, com tecnologia mais moderna, plataforma web, acesso horizontalizado. Atualmente 100% dos inquéritos policiais tramitam no ePol, de forma 100% eletrônica, não sendo mais utilizado o inquérito policial impresso em papel.
Importante também fazer uma ressalva histórica: em que pese o ePol ter sido desenvolvido com base em processos policiais e cartoriais arcaicos, o que inclusive consideramos ter sido uma oportunidade "de ouro" perdida, em que poderia ter sido feita uma revisão mais ampla dos processos policiais e cartoriais, ainda assim, sem dúvida houve algum ganho residual na mudança sistêmica SISCART>EPOL, isto é inegável.
Cinco anos depois da pesquisa original, o novo sistema ePol, que opera em nível nacional e possui plataforma mais moderna (web) que o SISCART e tem acesso mais horizontalizado, 100% digital, abre novas possibilidades para a solução da questão central apresentada na pesquisa de 2018, sobretudo com relação às 36 atividades consideradas de natureza mais administrativa (quadrantes inferiores) da pesquisa de 2018.
UMA NOVA VISÃO SOBRE O POSSÍVEL FUTURO DAS ATIVIDADES "CARTORIAIS"
Dos debates recentes que ocorreram nos grupos de Escrivães de Polícia Federal a respeito da questão surgiram novas possíveis soluções que vão além da simples transferência das atividades consideradas mais administrativas, que agora envolvem a parte sistêmica, as quais apresentamos de forma gráfica e sucinta através do seguinte esquema:
O quadro apresentado logo acima é a forma ilustrada de demonstrar possível solução, fruto de reflexões e aprofundamentos a respeito especificamente daquelas atividades constantes dos dois quadrantes inferiores da pesquisa de 2018, ou seja, as 36
atividades consideradas de natureza administrativa, tanto as mais simples (30) quanto as mais complexas (6).
O que surgiu foi uma nova visão, mais aprofundada, e ligeiramente diferente da anterior, a respeito destas atividades consideradas de natureza administrativa (cartorial), com desdobramento destas em novos quadrantes (obs: que não têm relação posicional com os quadrantes da pesquisa de 2018), que agora são formados por dois eixos, sendo o eixo vertical o nível de complexidade e responsabilidade da atividade e o eixo horizontal a possibilidade de automatização sistêmica da atividade.
Naquele ano de 2018 não tinha sido possível vislumbrar, como possível encaminhamento de solução para essas atividades de natureza mais administrativa, a automatização destas, pois o sistema daquela época (SISCART) não permitia, ainda, este tipo de raciocínio. Com a mudança para o sistema ePol, uma janela de novas possibilidades se abriu, e é sobre isto que vamos abordar nesta oportunidade.
Vamos à análise destes quadrantes para que seja possível entender cada um deles sob essa nova lógica, mais atual, em que não se vislumbra apenas a readequação do rol de tarefas do EPF pela transferência de atividades a servidores com perfil e formação mais adequados, e sim também pela automatização e integração destas, que não necessitarão obrigatoriamente de um ser humano atuando nelas.
O quadrante inferior esquerdo é composto pelas atividades administrativas (cartoriais) que são de mais baixa complexidade/responsabilidade e com menor possibilidade de automatização. Ou seja, são atividades manuais, repetitivas, mecânicas, e pouco complexas, mas com poucas possibilidade de automatização, pois dependem de maior grau de interação humana, seja por serem atividades físicas ou que dependem de algum tipo de análise ou decisão, ainda que de menor discricionariedade e complexidade. Por terem essas características, elas poderiam ser executadas por agentes administrativos até mesmo de nível médio, ou funcionários terceirizados, ou estagiários, sempre sob coordenação e supervisão de um servidor policial responsável.
O quadrante superior esquerdo é composto pelas atividades administrativas (cartoriais) de maior complexidade/responsabilidade, mas com menor possibilidade de automatização. Ou seja, são atividades mais complexas, que dependem de algum tipo de análise ou decisão de maior complexidade e responsabilidade, mas com poucas possibilidade de automatização, pois dependem da interação humana, seja por serem atividades físicas ou que dependem de algum tipo de análise ou decisão. Por terem essas características, elas deveriam ser executadas por um servidor policial responsável, que teria uma função equivalente ao que é hoje no judiciário ao diretor de secretaria, ou por um servidor administrativo de nível superior.
O quadrante superior direito é composto pelas atividades administrativas (cartoriais) que são de maior complexidade/responsabilidade, mas desta vez as que tenham maior possibilidade de automatização, ainda que em alguns aspectos, mas não totalmente. Ainda que sejam atividades mais complexas, que dependem de algum tipo de análise ou decisão de maior complexidade e responsabilidade, estas são as que podem, em algum grau, terem pelo menos suas rotinas facilitadas pelas automatizações e integrações sistêmicas. Estas ainda dependem de algum grau de interação humana, em algum aspecto, e dependem de algum tipo de análise ou decisão de alta complexidade e responsabilidade. Por terem essas características, elas deveriam ser acionadas, coordenadas, executadas e supervisionadas por um servidor policial responsável ou por um agente administrativo de nível superior, que também teria uma função equivalente ao que é hoje no judiciário ao diretor de secretaria. Para as atividades neste quadrante é imprescindível a atuação de um profissional da área de UX (experiência do usuário), a fim de otimizar o máximo que for possível as rotinas que dependam de interação humana, ainda que nem todas as atividades deste quadrante sejam totalmente automatizáveis, por serem complexas.
Por fim, o quadrante inferior direito é composto pelas atividades administrativas (cartoriais) que são de menor complexidade/responsabilidade, e com alta possibilidade de automatização. Estas atividades são as mais mecânicas e repetitivas realizadas dentro do sistema, ou seja, as mais suscetíveis a automatizações e integrações sistêmicas, pois pouco dependem de discricionariedades e decisões humanas. São aquelas tarefas que são puro "apertar de botões", as que causam maior "emburrecimento" e maior nível de insatisfação aos servidores de natureza policial de nível superior, por não estarem condizentes com suas formações e expectativas.
Destacamos que as administrativas (cartoriais) dos dois quadrantes à direita são os mais suscetíveis a utilização de programação, integração entre sistemas e inteligência artificial. Este é um caminho sem volta, faz parte do novo paradigma da tecnologia e do conhecimento científico da humanidade. As instituições, públicas ou privadas, que se derem ao luxo de abrir mão desse tipo de iniciativa, com certeza vão ficar para trás. A estratégia corporativa não pode ser em outro sentido, da melhor utilização possível do capital humano, mão de obra qualificada que não merece mais ficar apertando botões para realizar tarefas nitidamente "automatizáveis".
Das administrativas (cartoriais) dos dois quadrantes à esquerda, as que são menos suscetíveis às automatizações, é que se faz a divisão entre o que precisa, ainda, necessariamente estar sendo executada por servidores (humanos), sendo uma parte residual delas sendo executadas de fato por servidores com papel de gestão, de "diretor de secretaria", em razão da complexidade/responsabilidade, e as restantes por pessoal de apoio, sob supervisão e coordenação de servidores policiais com este tipo de competência gerencial.
CONCLUSÕES
1) As pesquisas realizadas pela ANEPF entre os Escrivães de Polícia Federal de 2018 até agora demonstram grande frustração e forte desejo de modernização do cargo.
2) A subutilização é muito nociva à saúde mental, causando problemas de qualidade de vida no trabalho (QVT), e levando a outras doenças associadas.
3) O capital humano na Polícia Federal é escasso e oneroso aos cofres públicos, e deve ser empregado da melhor forma possível, em atividades-fim de natureza policial e de maior valor agregado, beneficiando a sociedade.
4) A tecnologia atual já permite que muitas das tarefas e rotinas sejam automatizadas e integradas, não necessitando de tanta interação humana como há 10 ou 15 anos atrás. É uma questão de estratégia e foco concentrar esforços no sentido de buscar esse tipo de solução.
5) Além disso, é cristalina a tendência de se extinguir o "escrivanato" como um "cargo" específico (observar a tramitação da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis), passando a ser uma função residual a ser desempenhada em situações específicas em que a tecnologia não possa alcançar o resultado pretendido.
Brasília, 23/10/2023